Desde 1996, quando foi criada, a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) é responsável por normatizar o setor elétrico, principalmente pelo seu caráter eminentemente técnico. Este poder-dever de normatização consiste em um espaço deslegalizado para que agentes politicamente neutros e técnicos possam tomar decisões reguladoras. Tais decisões não são apenas normativas, como, também, executivas e judicantes, nos limites impostos pela lei, com a finalidade ponderação politicamente neutra de interesses concorrentes, entre os agentes privados executantes de atividade econômica de interesse público e o Estado.
Neste ano, com a recente, e polarizada, troca de comando do país, foi proposta uma MP (Medida Provisória 1.154/2023) para reorganização dos Ministérios, a qual foi alvo de emenda parlamentar pelo deputado federal Danilo Forte (União/CE). Sem nenhuma relação com a matéria da MP, a emenda 54 revoga o poder de exercício normativo das agências reguladoras e outorga a competência à conselhos ligados ao Poder Executivo. Além disso define que as decisões inerentes à atividade de contencioso administrativo da ANEEL serão de competência exclusiva de órgão administrativo julgador independente no qual se garanta o duplo grau de jurisdição e o direito à ampla defesa e contraditório.
Como é fácil perceber, o poder normativo da ANEEL será esvaziado, sendo exercido por conselhos ligados à administração direta, e não por entidades técnicas, especialistas no tema. Neste sentido, a ANEEL será apenas um agente no conselho do poder executivo, diretamente ligado ao Ministério de Minas e Energia, sendo este conselho responsável por criar e alterar as normas regulatórias do setor elétrico.
Ora, se os prováveis conselhos terão representantes de diversas esferas (Ministério, da Agência, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores...), na prática, traria mais democracia aos atos normativos, correto? Não é o que se prevê. O que se percebe é a intenção de esvaziamento da neutralidade política, que, mesmo tendo maior papel formal do prático, ainda existe, pelas características atinentes às agências reguladoras (tecnicismo, autonomia e independência).
Caso a emenda 54 seja aprovada, o que temos é mais uma gama de instituições a serem utilizadas como ferramenta de manobra política a fim de atender aos interesses (eleitoreiros) políticos. Neste contexto, o objetivo inicial e principal da criação da agências reguladoras - organizador das relações econômicas estabelecidas entre os agentes de mercado e consumidores em relação à serviços de interesse público, cuja execução se dê por particulares - estaria severamente prejudicado.
O ostentoso ataque perpetrado pelo poder legislativo à autonomia das agências reguladoras traz consequências em várias dimensões, políticas, institucionais e econômicas. Institucionalmente haverá uma outorga de competência a um órgão ligado à administração direta, ou seja, ao Estado, cujas decisões serão submetidas ao Congresso Nacional. Questiono: com qual arcabouço técnico o Congresso Nacional avaliará normas propostas pelo conselho no que diz respeito à energia, telecom, saneamento...? A resposta não é encontrada na justificativa de proposta de emenda apresentada pelo deputado Danilo Forte. Além disso, se com a mesma celeridade, que são apreciadas e postas em vigência as leis, se apreciar as regulações setoriais, certamente será desafiador que o Brasil acompanhe o ritmo acelerado dos mercados internacionais.
O que nos leva aos impactos econômicos e políticos. Com os entraves burocráticos e morosidade, além da instabilidade, falta de previsibilidade e ingerência política demonstrada por esse tipo de iniciativa o famoso “risco Brasil” aumenta, afastando investimentos e segregando o país perante o cenário econômico internacional. Sob a ótica política, o status quo seria alterado, pois, pela lei vigente, o Senado tem a prerrogativa de aprovar ou não o dirigente das agências reguladoras indicado pelo Presidente da República, a aprovação da emenda enfraqueceria o Senado, uma vez que a proposta não especifica como se dará a escolha dos membros do conselho, o que não agradou os representantes dos estados no Congresso Nacional.
Enfim, a aprovação do "jabuti"¹ prejudicaria a relevância, independência e tecnicismo dos atos regulatórios de cada setor. Na prática as agências terão seu poder diluído nesses novos órgãos, sem a garantia de critérios técnicos para a escolha dos integrantes desses colegiados, o caminho para a influência política na regulação dos setores regulados. Sem falar na (im)parcialidade com a qual veremos serem julgados os contenciosos administrativos, nos quais, muitas vezes, grandes empresas contestam multas, penalidades e aplicações de sanções impostas por descumprimento das regras, que têm como objetivo proteger os consumidores e o mercado.
Conforme última publicação do portal do Congresso Nacional, a MP 1.154/2023 está em fase de deliberação, aguardando designação dos membros da comissão, tendo, ainda, muitas etapas antes de sua eventual entrada em vigor. Importante observar que, após instituída a Comissão Mista, o seu presidente possui a prerrogativa de indeferir liminarmente as emendas apresentadas que forem estranhas ao texto original da MP, como é o caso. Espera-se, então, razoabilidade dos participantes do processo na tomada de decisão.
¹ "Contrabando" realizado pelos parlamentares ao inserirem em uma proposta legislativa um tema que não guarda relação com o texto original. Para o Supremo Tribunal Federal, a prática de emendas “jabutis” quando do processo de conversão em lei de Medidas Provisórias vai contra os preceitos constitucionais que regulam não apenas o processo legislativo, mas o ordenamento jurídico como um todo.