Em 2021 pouco se apostava que haveria uma sobreoferta de energia elétrica tamanha como atualmente, pelo contrário, foi considerado um cenário de possível racionamento, contratações emergenciais foram feitas (como o famoso Procedimento Competitivo Simplificado) e o custo marginal de operação chegou a exceder R$3.000,00/MWh em agosto. As chuvas do final desse mesmo ano deram início a uma condição positiva jamais imaginada de reservatório. Em maio de 2022, todos os subsistemas apresentavam volumes maiores que 60% do armazenamento total. O PLD (Preço da Liquidação das Diferenças) foi para o mínimo e não sofreu grandes variações, reflexo da segurança energética atual e da sobreoferta de energia.
O preço da energia elétrica calculado pelos modelos de planejamento da operação é composto por duas parcelas: o custo presente e o custo futuro, conforme mostra o gráfico abaixo. A primeira parcela é referente às decisões do presente e a segunda as adotadas no futuro, no entanto, como o sistema brasileiro é predominantemente hídrico, essas variáveis são dependentes no tempo (dilema do uso da água).
Cálculo do Custo Total
Fonte: Kligerman et al, 2005
Dessa forma, no passado, os atrasos na expansão da capacidade instalada brasileira foram um grande problema na gestão dos recursos hídricos para a programação da operação do sistema elétrico brasileiro. Os modelos de planejamento decidiram ser seguro o uso da água considerando que um grande volume de oferta que entraria no futuro, em linha com o crescimento da carga no país. A carga subiu, mas a expansão não aconteceu, e foi um dos principais fatores atribuídos ao racionamento em 2001 e na crise do setor em 2012. A falta de alinhamento entre a expansão da geração e da transmissão é até hoje uma grande dificuldade.
Em relação ao parque gerador, a expansão hídrica chegou ao seu limite por questões físicas e ambientais. O número de térmicas aumentou, e nos últimos anos o destaque se deu para as fontes eólica e solar por conta do incentivo à uma matriz renovável e descarbonizada. No gráfico a seguir, nota-se a evolução da participação das fontes de geração, e surpreende a retomada do valor de mais de 90% da geração através de renováveis, em que a eólica chegou a 19% de participação em agosto de 2022 e a hídrica a 79% em março de 2023.
Participação por Fonte na Geração de Energia Elétrica
Fonte: ONS
Apesar da participação pequena, cerca de 3% da geração, a energia solar tem boa contribuição para a segurança do sistema, pois alivia significativamente o horário de pico, conforme indicado no gráfico adiante. Em março, a contribuição da solar no subsistema sudeste foi equivalente a cerca de 5% da carga às 11h da manhã, horário próximo ao pico da geração.
Geração média horária da energia solar
Fonte: ONS
Sendo assim, hoje o cenário é de imensa oferta de energia renovável, em que os 5% de participação das térmicas se dá por inflexibilidade. Na representação gráfica abaixo, é possível observar como estão as curvas de oferta e demanda para todos os submercados. A mesma indica que a sobreoferta hídrica está em torno dos 25GW e a térmica em torno dos 15GW, o que justifica o preço no mínimo regulatório, ou próximo dele, já a quase 18 meses.
Curva de Oferta e Demanda de Energia Elétrica
Fonte: CCEE
Com esse volume de energia renovável e intermitente, as hídricas deixaram de exercer o papel exclusivo de geradoras de energia e passaram também a serem acionadas para segurança energética para estabilização do sistema. Por isso, deveriam ser remuneradas adequadamente pelos chamados “serviços ancilares” (de apoio à segurança do sistema elétrico) para poderem investir em modernização para tal serviço. Segundo o presidente da Eletrobrás, Wilson Ferreira Junior, a usina hidrelétrica de Sobradinho chegou a ser despachada 18 vezes em um único dia. O problema é que a turbina da usina hidrelétrica não foi feita para funcionar assim, e para que ela possa se modernizar, é necessário ser remunerada.
A geração predominantemente renovável com sobra energética também se deve ao elevado armazenamento em todos os subsistemas que no final de junho estão acima de 80% da sua capacidade máxima. Se a condição hídrica não fosse tão favorável, naturalmente seria necessário o despacho de mais térmicas, inclusive para a execução dos serviços ancilares.
Não se pode esquecer que, a Califórnia, Estado exemplo em energia limpa, sofreu em 2020 com falta de potência para atender o horário de pico depois do descomissionamento de 9GW de térmicas nos 5 anos anteriores. Uma seca acabou limitando parte da geração hidrelétrica e houve um descasamento no sistema em que a desmobilização do parque térmico foi maior que a capacidade que o sistema tinha para lidar com as variações de sazonalidade de carga e oferta. [1]
A matriz predominantemente renovável é um projeto essencial para o desenvolvimento sustentável e requer cuidados, porque é sabido que nenhum evento climático extremo dura para sempre. Da mesma maneira que o sistema brasileiro saiu da iminência de um racionamento de energia para a extrema abundância, o contrário pode acontecer. É imprescindível que os técnicos de planejamento não se deixem contaminar pelo presente e pela meta da matriz renovável, sem pensar devidamente nos riscos, inclusive do ponto de vista dos modelos de planejamento que no passado mostraram falhar quanto a isso.